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Rua do desassossego

Onde cantam as cigarras

Rua do desassossego

Onde cantam as cigarras

Nunca foi só futebol

Julho 05, 2025

Cláudio Gomes

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Já tudo foi dito e já tudo foi escrito mas existem momentos em que todos nós sentimos a necessidade de desabafar, de dizer algo nosso, porque era alguém que parecia ser tão igual a nós. Não nos sentimos tão próximos de um Cristiano, de um Neymar ou de um LeBron, como nos sentimo-nos próximos de um Diogo Jota, o rapaz de Gondomar, de origens humildes, que chegou ao topo numa das poucas áreas em que neste país não é necessário herdar para ser alguém, ou ser filho do doutor, ou conhecer as pessoas certas e mover-se nas redes de influência. Penso que é por causa dessa familiaridade que o Diogo tinha com a maior parte de nós, que a onda de comoção foi ainda maior do que esperávamos. Ele chegou ao topo de forma digna e a um clube que me é especial e tem na sua placa uma espécie hino eterno, agora ainda mais ligado ao Digo,You'll never walk alone.

O Diogo não causava anticorpos nem sentimentos mistos. Não sabíamos o que pensava, o que gostava e o que desgostava, o que lia ou o que ouvia. Ele talvez soubesse que era melhor assim, usando a sabedoria da simplicidade. Poderia ser perfeitamente aquele colega de turma que não chamava a atenção e que nunca nos lembraríamos dele hoje em dia. Gostávamos todos dele porque ele mantinha a atitude de antivedeta, não se importando de ajudar os outros a serem ainda mais vedetas do que ele, uma raridade hoje em dia. Um gigante que passou discretamente pelo altar da vida num mundo repleto de anões que se esticam à procura dos holofotes, sem sucesso. Gostávamos todos dele porque, conhecendo agora mais pormenores da sua vida, ele viveu as etapas certas, na altura certa, colhendo os frutos certos, num tempo em que a maior parte das pessoas parecem ter deixado de o saber fazer, num tempo em que a sociedade parece ter falhado em criar mais pessoas assim, pessoas que passam pelos pingos chuva das polémicas e dos egos, que vivem as suas vidas com significado e sem ruído.

O dinheiro e a projeção nunca lhe encheram a cabeça de vaidade, não lhe encheram o corpo de piercings e tatuagens, de penteados burlescos, de jatos privados, de grandes produções para marcas e redes sociais. E não lhe encheu a vida com mulheres de ocasião num tempo e num meio tão propício a usar e a deitar fora, como é este.  Tinha casado com a namorada de sempre há poucos dias e tinha três filhos. Não se consegue encontrar desfecho tão imoral para tão profícua vida, arrancada antes dos trinta.

Não me esqueço das palavras do gigante Agostinho da Silva, que sobre a morte dizia "Quando acabássemos, dever-se-ia dizer: morreu um poema". Foi isso mesmo que morreu.

O cansaço dos influenciadores

Junho 02, 2025

Cláudio Gomes

De vez em quando vejo-me obrigado a fazer "mute" às stories da quantidade cada vez maior de alegados influencers de redes sociais. Isto é especialmente recorrente na rede social Instagram, que há muitos anos a esta parte deixou de ser uma rede de fotografias distinta para tornar-se num captador de vídeos curtos e virais incaracterístico, para além de um feudo para pessoas que se querem afirmar nas mais diversas áreas, desde a moda, a nutrição, o fitness, as viagens, a prostituição disfarçada e cada vez mais da estupidez.
Se não temos cuidado, tornamo-nos vítimas silenciosas desta gente, a cada visualização ou "engage" que lhes oferecemos.
Entendo que quem leva as redes sociais como um trabalho, tenha de ser regular ou como se diz agora, consistente, nesse sentido essas pessoas lançam dez ou mais stories todos os dias, ainda que só um ou dois tenham alguma relevância e não seja uma redundância dos outros.
Estas pessoas, mesmo as que têm intenções nobres, talvez não percebam que são cansativas, muitas vezes até irritantes e repetitivas e não raras vezes são portadoras de um egocentrismo mal disfarçado. Também não percebem que ao insistir na publicação massiva de reels, o efeito que provocam em quem os segue, a prazo, é exatamente o oposto daquilo que eles pretendem.
Fico preocupado com o efeito desta gente nos adolescentes e nos jovens adultos porque alguns destes alegados influencers mesmo sendo já trintões e às vezes quarentões, comportam-se como autênticos adolescentes ou outra espécie qualquer de criaturas mimadas. Não existe situação mais deplorável que ver algumas destas pessoas a publicarem sketches alegadamente humorísticos, cujas piadas são do mais básico, aquelas que nós deixámos de fazer quando fomos para a escola secundária, o discurso é do mais boçal, as situações são do mais vulgar e as companhias nos videos são personagens que teríamos vergonha de levar a casa. Não raras vezes os reels que se tornam virais e alvo de falatório neste mundo paralelo das redes sociais são propriedade de criaturas que são do mais burgesso que existe, arrogantes, insolentes, aqueles que dantes estavam confinados aos cafés dos subúrbios ou às tabernas da província, e que se veem, de repente, com um altifalante capaz de amplificar a sua ignorância além fronteiras.
São os Numeiros, são as Mariana Bossis, são os Tiagos Grilas, as Cláudia Nayaras, os Windohs, os Wuants, as Ritas Pereiras, os Diogo Faros e por aí fora. São dos mais populares nas redes sociais e nenhum deles é conhecido por saber fazer algo de útil, por ter uma habilidade que ninguém mais tem, por ter um talento que possa estimular pessoas de qualquer idade a seguir o seu exemplo, por ter um pensamento inspirador, por terem feito algo merecedor de uma condecoração qualquer. Quase sempre são conhecidos apenas pelas piores razões, pela sua vulgar conduta e pelas alarvidades que daquelas bocas saem. Todos eles são representantes da cultura big brother, deste tempo de futilidade breve, deste capitalismo tardio repleto de todos estes vazios coletivos, preenchidos nas redes sociais pelo oco de uma geração individualizada, ironicamente apelidada por políticos e jornalistas como a "mais bem preparada de sempre".
E como estas pessoas consideram-se pequenos deuses com pés de barro, quando caem, raramente se voltam a reerguer.

E essa é a sorte dos seus antigos seguidores.

Apagão

Abril 29, 2025

Cláudio Gomes

Pessoas a conversarem nos transportes, os parques infantis repletos de crianças ao fim da tarde. Um cenário  - este último cenário eu comprovei com os meus olhos. como já não víamos há décadas, um regresso momentâneo a um passado mais saudável, mais próximo da nossa essência. O dia 28 de abril de 2025 ficará marcado por este apagão mas sobretudo pela nossa dependência dramática face à eletricidade e à internet. No dia de ontem quem ainda era proprietário de um rádio a pilhas ou tinha um camping gas para cozinhar, sentiu-se único, no meio de uma sociedade desorientada, impreparada para o tamanho impacto que um corte destes trazia consigo. 

Sem eletricidade as pessoas desorientam-se, sem a televisão para acompanhar os acontecimentos os nervos aumentam, sem rádio a pilhas ou a energia solar, uma massa continental rapidamente se assemelha a uma ilha deserta e sem internet para comunicar ao mundo e aos seus o que está a acontecer e como se sente, tamanha aflição eleva os níveis de ansiedade a um nível extremo. Ontem foi esse dia.

Ontem foi o verdadeiro Dia da Terra, esse dia festivo que basicamente apenas é comemorado no centro de algumas cidades aderentes e que apenas corta algumas ruelas, deixando de fora todas as estradas e tráfego automóvel digno desse nome. Uma fachada em honra do ambiente.

Talvez fosse boa ideia propor um dia semanal assim, como o dia 28 de abril, nem que fosse ao fim-de-semana, para não afetar muito a economia. Seria o Dia da Cura. Uma pequena cura para algumas das nossas piores dependências. 

 

Nomadismo digital

Março 24, 2025

Cláudio Gomes

Cada vez mais concluo que esta ideia que o capitalismo vende do nomadismo digital e desta coisa de poder trabalhar remotamente e viver em qualquer lugar, com o máximo de liberdade, não passa de uma ilusão, que está sobrevalorizada e que se torna numa desilusão crescente à medida que a idade avança.

O ser humano é um ser de hábitos e que precisa de estabilidade para progredir e evoluir. Não quero com isto dizer que em certos períodos da vida não seja necessário mudar de vida ou emigrar, fixar-se em outro lugar e florescer nesse novo lugar, no entanto fazer dessas mudanças constantes um estilo de vida, pode trazer mais insatisfação e vazio do que a suposta "liberdade" e "riqueza de experiências", tão desejada por muitos e tão propagada nos "reels" das redes sociais. 

O nomadismo, neste caso o digital é uma prática comum na minha área profissional e eu mentiria se não dissesse que também já me senti seduzido pela ideia. A verdade é que este estilo de vida proporciona a quebra constante de laços sociais e as redes de apoio, e para estes profissionais, os períodos aqui e ali, acabam por não significar mais do que períodos de férias prolongados em que esse indivíduo acaba por receber dinheiro, em vez de apenas o gastar, numas férias tradicionais.

Que experiência transformadora me poderia acontecer, a trabalhar remotamente em Bali ou noutro lugar ídilico qualquer, se eu estivesse o dia inteiro à frente do meu ecrâ, a lidar com as mesmas tarefas e a interagir com as mesmas pessoas de sempre? E que experiência profunda ganharia eu, ao final do dia, quando encerrasse o computador, saísse da minha jaulinha de luxo, comum nesses lugares, com todas as comodidades feitas exatamente para o cliente nem querer de lá sair? Provavelmente iria terminar o dia em algum bar, no meio de outros nómadas digitais, agarrado ao telemóvel, teria as banais conversas superficiais com eles no inglês comercial que todos nós dominamos, não sendo anglófonos. Provavelmente em alguns dias beberia uns copos a mais, noutros e com alguma sorte, até poderia levar uma dessas companhias superficiais para casa para contactos igualmente superficiais. Tem a sua piada aos vintes, no início dos trintas, mas... e no final dos trintas? E nos quarentas? E será que alguém ainda o faria aos cinquentas?

O nomadismo digital potencia a superficialidade das relações, um problema ainda mais grave numa era pós-pandémica que enfraqueceu laços sociais, familiares e profissionais e cujo impacto ainda não é possível avaliar em toda a sua dimensão. Esta forma de vida, vendida como "lifetyle" glamoroso pelo mercantilismo desta era, potencia a gentrificação dos locais, desestabiliza sobretudo as pequenas comunidades, cujas relações sociais, são por norma mais intensas, para além de ao mesmo tempo não promover um contacto mais profundo do nómada com essa comunidade, visto que estará ali por um período muito limitado. Outro aspeto negativo deste nomadismo é a adaptação. Por mais que seja tudo temporário a mente aborrece-se com o excesso de novidade. Não saber onde estão as chávenas, a televisão não ser smart, não haver microondas, o tempo que se demora na escuridão a encontrar a porta do quarto ou a chegar ao corredor. E depois há o dia em que se sente falta daquele supermercado que tinhamos ao pé de casa, do barbeiro ou do nosso ginásio. Somos seres de rotinas que carecemos de alguma disciplina e familiaridade para nos mantermos estáveis. Num lugar novo é necessário estar constantemente à procura das comodidades que tinhamos ao lado de casa e que ali podemos já não ter. Perde-se tempo até nestes detalhes, que consomem energia e disposição que poderiam ser usadas para outras tarefas.

O nomadismo permite aspirar lugares, paisagens e pessoas, como se fosse fast-food, mas o mais certo é que nada de verdadeiramente valioso acrescente à vida de alguém, a partir de uma certa idade ou maturidade, tal como a comida rápida não acrescenta nada de nutritivo para o organismo. 

Viajei muito no passado e num sistema semelhante a este estilo de vida. Conheci imensas pessoas, preservei nem sequer meia dúzia deles e ainda hoje quando faço os meus Caminos, já não tento sequer a conversa de ocasião com outros caminhantes, porque já não sinto vontade de ter estas conversas de ocasião com gente que o mais certo é não voltar a ver mais. Não me fecho numa concha e serei sempre sociável mas nunca mais ao ponto de procurar essa socialização, a mesma que o nomadismo digital deste tempo vende e que na verdade não passa de um saco repleto de muitos vazios.

Migração

Março 21, 2025

Cláudio Gomes

Ao fim de quase duas décadas no Blogger, decidi finalmente migrar para a nossa plataforma de blogues, do portal Sapo. Cansei-me dos senhores da Google, para além de não compreender o desinvestimento e desinteresse da marca nesta plataforma pessoal com gente dentro. O Blogger tornou-se no VHS da internet e receio que tenha os dias contados. Foi bom enquanto durou. Olá Sapo!

Desta margem

Fevereiro 16, 2025

Cláudio Gomes

 

 

 


Desta margem do rio os meus horizontes se alargam, caminho pelo meio de muitos espíritos a viver a sua experiência humana e terrena, todos eles iguais a mim, inconscientes da sua finitude. Por trás destes óculos escuros os meus olhos transbordam mais pequenas gotas de sal do que as gotas que correm neste rio.
Um ser solitário vivendo várias experiências de comunhão caminha ao entardecer. Lança flores com questões aos céus e ele devolve-lhe pétalas murchas de silêncio.
 
Que dimensão é esta?
São tempos de dor e mel, um domingo qualquer em que o gatilho disparou e todas as sombras desceram à minha janela.
 
E fiquei aqui a observar estas aves que no rio também vivem a sua experiência terrena. As adultas a cuidarem das crias, a alimentá-las, a protegê-las, a ensiná-las a voar. Deixam o seu legado, os seus ensinamentos, os seus valores, que as crias habituam-se e pensam que será para sempre. Mas nesta dimensão não há para sempre.
 
Dizem que é por causa das estações. Missão cumprida, de súbito as aves partem em migração para outras latitudes, para outra dimensão, em tamanha semelhança com a nossa humana dimensão.
E ficamos nós aqui, com mais porquês do que afirmações, na dor dos desconsolados desta dimensão.
 
Que os físicos, cientistas e toda a inteligência artificial possam depressa me indicar para que lado fica essa dimensão e como estão os que lá habitam - a família gigante - como dizia Jim Morrison. É duro viver com esse mistério, é duro viver com essa sentença eterna tatuada na memória, é duro viver nesse vazio onde ardem nebulosos pensamentos e ressoam mudas as palavras.
Tenho muitos abraços e beijos para te dar.

 

E se..?

Janeiro 27, 2025

Cláudio Gomes


    Há uma valorização paradoxal e disfuncional em relação ao que se entende por "multi-tasking". Nós não deveríamos ter mais valor profissional por fazermos três ou mais atividades ao mesmo tempo para além de outras que não devemos descurar. O Linkedin está repleto de ofertas de trabalho onde essa palavra é valorizada à exaustão e muitos dos seres celestiais que por lá andam dizem oferecer também essa possibilidade aos seus hipotéticos empregadores. O multitasking é sub-humano, uma nova espécie de escravatura, como refere tantas vezes o filósofo sul-coreano Buyng-Chul Han. O multi-tasking é a desumanização da espécie. Só os animais são verdadeiramente multi-tasking já que precisam estar sempre alerta para obter a próxima refeição e ao mesmo tempo estarem atentos aos perigos da vida selvagem, aos predadores, ao encontrar refúgio seguro, etc. Que sentido faz nos dias de hoje ser multi-tasking quando temos comida no frigorífico e nas prateleiras da cozinha para vários dias? Que sentido faz essa palavra quando temos um tecto para todos os dias, quer faça sol ou faça chuva? Que faz sentido quando perdemos um transporte daí a uns minutos temos logo outro? Tudo isto é um absurdo. O multi-tasking apenas agrava o mal do século - a ansiedade - para além de atrair outros sentimentos negativos para a equação como a competição e a comparação injusta.
    Temos muito para aprender com os bebés. Eles choram quando têm fome, choram quando têm sono e quando lhes dou a ouvir os sons do chamado white noise, por forma a se acalmarem e adormecerem, parecem apenas se concentrar naquilo e mais nada, adormecendo em poucos minutos, tal como se calam após estarem alimentados. Parece simples. Enquanto isso, eu estou  ler uns email do trabalho, tenho uma folha de excel aberta com uns cálculos de gastos, estou a ouvir um podcast, tenho vários PDF's abertos em que de quando em vez me concentro nos temas para o próximo exame de História de Portugal Moderno. Sou um cidadão multi-tasking? Não, sou um pequeno miserável contemporêneo.  
    A valorização excessiva do trabalho, daquilo que fazemos e do multi-tasking ocorre à medida em que a sociedade moderna vai perdendo a essência dos seus mais elementares valores e o sentido de comunidade. Valoriza-se o trabalho porque já não nos reunimos com os amigos, valorizamos o trabalho porque já não temos religião e os compromissos sociais e festivos relacionados com ela, valorizamos o trabalho porque já não temos vontade genuina de conhecer ninguém para além do conforto e da insensibilidade das apps de engate. Valorizamos o trabalho e os fones nos ouvidos porque tornámo-nos insensíveis aos sons da comunidade, na rua, nos transportes públicos ou no ginásio. 
Ficou o trabalho, seu miserável.

Identidade

Dezembro 28, 2024

Cláudio Gomes

E falou-se sobre as bombas em Kiev e em Gaza, dos encostados no Martim Moniz, do que não foi notícia e deveria ter sido. Falou-se de paternidade, dos filhos que já nasceram e os que ainda estão para nascer. As vidas multiplicam-se por lá e por cá e há bons presságios no ar. Falámos de política nacional e regional, do Almirante e dos palhaços Marcelo e Miguel. São, por unanimidade, as piores figuras do ano, prémios atribuídos todos os anos nesta anónima convenção.

Contaram-se histórias e peripécias de férias, em ilhas próximas e em terras distantes, recordamos fases de vida e situações dramáticas que só o tempo teve o condão de as amolecer e sarar, tornando-as cómicas aos olhos de hoje. Lamentamos alguns que partiram e do quanto o Natal arruína os planos da dieta e a capacidade que ele tem de projetar e chutar todos os planos para o ano seguinte.

Vamos varrendo para debaixo do tapete o que não é sadio, comemoramos apenas as vitórias. Falámos de planos de sucesso e de planos gorados, do eterno feminino e das obrigações, da exploração, numa terra de horizontes curtos, resignação, parcas oportunidades e terrenos minados. São as leis da vida e da sobrevivência na ilha, discutidas ao sabor de um tinto alentejano.

Sem nunca sabermos se foi a última vez, como tantas vezes acontece na vida de tanta gente, dialogamos com parábolas, metáforas e piadas numa cumplicidade que quase se assemelha a um dialeto. Antecipamo-nos e brindamos duas vezes a um próximo encontro, à próxima convenção onde serão retomados os temas de sempre. É o melhor prelúdio a um ano novo que se avizinha repleto de metas e esperança.

 

Desconexão

Setembro 20, 2024

Cláudio Gomes

Elon Musk anunciou, por estes dias, a possibilidade do acesso à internet nos voos comerciais e de forma gratuita, já a partir do próximo ano. Para alguém como eu, que viaja bem acima da média do português comum, seria na teoria, uma boa notícia, mas não é. Uma notícia destas e essa possibilidade cada vez mais próxima, significam a quebra da última fronteira à intrusão da conectividade na vida humana. A esse flagelo, de que nem eu me consigo libertar, talvez resistam apenas as criaturas do fundo dos mares e mesmo assim já nem é certo que esse espaço; povoado de peixes-lanterna, peixes-bruxa e peixes-dragão, habituados que estão, a estarem sozinhos na escuridão do fundo dos mares a viverem as suas vidas tranquilamente na imemorial vida de presas e predadores; escapem às ondas da conetividade.

Diz o magnata do futuro que a sua Starlink foi concebida para ligar os muitos lugares do mundo onde a conetividade mais tradicional, funciona mal ou nem sequer funciona. Que bom samaritano! Deixaremos de poder estar em liberdade e solidão a contemplar o horizonte, em lugares onde até há pouco tempo era possível vivenciar uma experiência humana livre de ecrãs, teclados e aplicações, longe da intoxicação digital. Como pode ser isto uma boa notícia? Adeus àquela duna de deserto algures entre Marrocos e Argélia, sem nenhum risquinho de internet disponível, lugar onde apenas as estrelas brilham e o vento seco do deserto acaricia o rosto. Adeus solidão da vasta Groenlândia, à beleza do seu urso branco e à quietude da sua paisagem. Adeus remota Sibéria, lugar para lá do fim do mundo, próximo da estrela-polar, do imaginário popular e histórico de todos os que não são russos. Deixará de estar tão longe, deixará de estar em paz. Desculpem, índios Yanomami, deixarão de ser das tribos mais isoladas do mundo. Por favor, não sucumbam à conectividade para se comunicarem com outras tribos. Não deixem morrer os sinais de fumo, já que nós, os supostos desenvolvidos, nem nas nuvens, poderemos estar livres, durante aquelas poucas horas de voo.

Receio assim, que os problemas que enfrentamos em terra serão também transportados para o céu. Teremos youtubers a fazer os seus programas em pleno voo, incomodando aqueles que queriam aproveitar o voo para por a leitura em papel em dia ou simplesmente relaxar ou dormir, antecipando os problemas do jet lag. Antecipo já os problemas entre os passageiros, entre os que pretendiam algum relaxe e os dependentes de estímulos e de vazios em forma de conectividade - os piores toxicodependentes da idade moderna. Veremos muitos ditos influencers a se fotografar em voo para publicarem em tempo real para as suas redes vazias de sentido mas sedentas de estímulos. Ouviremos com frequência podcasts feitos ao vivo em voos transatlânticos e não juro que os próprios intervenientes venham sentados nesses voos, uns nos bancos da frente, outros sentados lá atrás em grande euforia por tamanho avanço tecnológico. Ouviremos as irritantes mensagens de voz, cada vez mais populares, vindas de todos os lados, porque para muitas pessoas digitar num teclado é cada vez uma tarefa mais aborrecida e sendo por escrito cada vez é mais comum ir com erros. Se sair de forma verbal, há muito mais tolerância e ninguém leva a mal. E por fim, infelicidade nossa, teremos o mais aberrante dos atentados à inteligência, também com rédea solta nos voos - os lives do tiktok - a serem feitos a nove mil metros de altitude. E os que terão de trabalhar durante aquelas horas, adiantando trabalho, já que o problema da conectividade, deixa de existir? Será um teatro de horrores, um imenso zoo anárquico em que se transformarão os Boeing 737 ou os Airbus A-320 com a concretização destas medidas. Imaginam a balbúrdia e a falta de respeito por quem está sentado ao lado? Tendo em conta a educação e a falta de empatia das gerações “tiktok”, prevejo imensos problemas, que as companhias aéreas terão que lidar.

Como nem tudo é negativo, também por estes dias a Finlândia anunciou o regresso do papel e da caneta às salas de aula e irá proibir os telemóveis nas escolas. É um ótimo sinal, pois alguns avanços tecnológicos, como são tidos por muitos, não são mais do que retrocessos a médio e longo prazo, cujos malefícios ainda não estão todos estudados e que trazem desconforto, inutilidade, irresponsabilidade e irritabilidade. É tempo de estendermos o tapete ao sossego, darmos espaço ao silêncio, à desconetividade, à mudez, ao recolhimento. Isso é ser humano.

Fugas

Setembro 16, 2024

Cláudio Gomes

Volta e meia dou comigo a visitar sites de emprego de outros países. Habituei-me a tal coisa numa outra fase de vida e de vez em quando sou assaltado por ela. Na verdade, eu não preciso nem tenho nao desejo real de voltar a sair do país e voltar a repetir os difíceis capítulos de ser estrangeiro, de não se encaixar, o ter de se adaptar, o ter de lidar com tantas situações novas, tudo isso num corpo que já não é tão jovem como o era nessa fase e numa cabeça já não tão fresca e inconsequente como era nessa fase.

Talvez seja por um impulso de fuga que dentro de mim sempre exisiu. Não saber qual o meu berço, o andar de berço em berço desde tenra idade, fugir de uma ilha, fugir de pessoas, começar projetos e relações já com o sensação de de acabá-los, ser como aquele cowboy que estando no Oeste, pedia informações de como ir ainda mais para Oeste.

A nova situação familiar também tem-me mudado. Ser pai, pensar a longo prazo, pensar numa cria e que futuro terá ela num país, cuja manchete do jornal mais vendido, assim rezava hoje "Filho de Marcelo mete 14 cunhas ao pai" e pensar que este país nunca se libertará destas amarras decadentes, que estão solidificadas até às entranhas do mesmo, que será sempre o país da cunha, dos amigos, dos favores, o saber que só triunfa aqui quem já é filho e neto de poderosos e resignar-se ao saber que filho de remediado, salvo rara excepções e estranhas conjugações de astros, nunca será mais do que isso, e regozijar-se interiormente com aquele exército de peões irregulares ou ilegais que transitam nas ruas e que sabemos estarem bem pior que nós.

Então começo a pesquisa, regra geral sempre focado em dois ou três países, para evitar a dispersão, um dos meus mais graves problemas. São eles a Suiça, a Noruega e mais recentemente a Austrália. Tudo o que cheira a união europeia já não entusiasma quem, como eu, já teve o privilégio de viajar muito por quase todos os seus países. A minha preferência passou há muito a estar direcionada para países emancipados e não em conjuntos de países com leis decadentes, desajustadas a 2024, países permissivos a qualquer influência externa, venha ela de algum país poderoso ou até dos despojos e do miserabilismo social que cá tenta entrar, baixando o nível de todo o bloco.

A Noruega é fria e não me parece ser um povo acolhedor. São educados, formais mas querem-se na deles e tu na tua. Falam um suco estranho e eu já não tenho a frescura mental para aprender nova língua em curto espaço de tempo. 

A Suiça tem só uma hora de diferença, central european time absoluto, rainha da emancipação rodeada de euros, mas com os seus cofres inteligentemente contados em francos. País orgulhoso, com serviço militar obrigatório, regras claras e exigentes para quem chega e se quer fixar. Falam francês, língua que arranho, já trabalhei lá uma semana durante uma viagem de trabalho e gostei muito de Lausanne. Não têm mar, o que é uma desilusão. Têm o lago Evian, entre outros. Mesmo em meio urbano a Suiça é um país tedioso, pois tudo funciona bem, bem demais para um latino como eu, talvez seja por isso que são prósperos. Está sempre a me chamar. Talvez um dia.

E por fim a Austrália. Pesquisei por sites de empregos e vi muitas oportunidades na minha área, com valores duas ou três vezes maiores, e eu sou dos que até se pode considerar que ganha bem, num país como Portugal.

O mapa transportou-me para a cidade de Perth, no ocidente australiano e por segundos senti-me a entrar nas águas do Índico, oceano que nem em sonhos nunca me imaginei. Perth não é perto de nada, fazendo o trocadilho básico. Está de costas voltadas para a própria Austrália. Prefere olhar para o Índico. Está longe de Sydney, de Darwin, de Melbourne, de Brisbane e até de Adelaide está longe. Segundo o sistema climático de Koppen "tem verões quentes e os invernos são relativamente amenos e húmidos, o clima é mediterrânico, sendo a capital mais solarenta da Austrália". 

Lá dentro do gigantesco país, um extenso continente de pedras, areia e silêncio, não sei se repleto de cangurus, mas com muitas cobras e aranhas venenosas à espreita. Não será um destino entediante, presumo. Gostaria de saber o que se faz em Alice Springs, a única cidade com relevância naquele interior profundo. Será que os ovos fritam em cima da areia? Mas depois penso no fuso horário. Para Perth são sete horas de diferença, para Sydney são nove horas. Aqui quando dou o iniciar, lá eles estão a dar o encerrar sessão e festejam o ano novo bem mais cedo. Penso que só poderia vir cá uma vez por ano, e depois de dois voos longuíssimos e um jet lag capaz de dar a volta ao estômago e aos sonos. Mas ainda assim penso naquilo. Ainda assim continuo a não acreditar neste país que me resignei a viver e a contribuir, sem ter garantias de grande coisa e mesmo que estas asas já um pouco gastas estejam sempre em posição de lançamento. Penso na hipotética ida, em me fixar por ali, viajar e explorar o sudeste asiático, Indonésia, Tailândia, Vietname e poder fazer vida de turista com capital para a seério. E penso a uma distância de vinte anos, no futuro que a minha filha terá cá ou num país como a Austrália. E então páro de pensar para não ficar ainda mais triste.

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